sábado, 31 de maio de 2014

Meritocracia funciona ?

Cada um deve dar conforme sua capacidade e cada um deve receber conforme sua necessidade (Karl Marx). Este é o princípio do Cristianismo primitivo. Vemos isto numa família. Pais não se importam de dar mais que os filhos, e nem que os filhos recebam mais. Mas entre irmãos a coisa já não funciona tão bem assim. Um irá dizer "por que eu ganho menos se estou ajudando mais ?".

Este princípio é o espírito de fraternidade que Jesus pregou e que esteve presente também na Revolução Francesa. Num grupo pequeno, é possível que dê certo. Mas quando o grupo cresce demais, os enganadores ou aproveitadores (cheaters) aparecem e estragam a festa. Aí então o comunismo deixa de funcionar. Matt Ridley (no livro "As origens da virtude") já dizia que os aproveitadores já existiam quando os homens eram caçadores-coletores. Alguns saíam para caçar e outros ficavam esperando os resultados. Em alguns casos, havia a condescendência: os que tinham caçado não se importavam muito em dividir com quem não tinha se esforçado. Mas isto acontecia quando o resultado da caça excedia as necessidades. Quando era insuficiente ou quando isto se repetia muitas vezes, nem mesmo o nobre selvagem para aguentar os aproveitadores.

Talvez a revolução da agricultura, impondo especialização de trabalho e erguendo os pilares do governo e da justiça, tenham ajustado o curso da divisão entre os homens. E piorou no momento em que alguém delimitou um pedaço de terra e chamou de seu (e aí nasceu o direito de propriedade). Os animais domesticados também tinham donos (e os filhos destes também já nasciam como propriedade). Mas o mamute e a gazela que viviam soltos eram de quem os pegasse primeiro.
Se um grupo social consegue controlar os aproveitadores, estes ou são punidos ou então
desaparecem (se tornam cooperadores ou vão para outro grupo). Mas num grupo grande é difícil controlar quem realmente está fazendo e quem está fingindo. E não estou falando só de sociedades mas também empresas.

O prof. Palazzo fala dos "pequenos irmãos (small brothers)" (ver post aqui). Cada pessoa controla a outra. E todos estão sendo observados por seus pares (não por ua entidade centralizadora). Foi o que aconteceu no filme de Hithcock "Uma janela indiscreta". Mas hoje, com tanta tecnologia disponível e acesso à informação, é possível monitorar com mais detalhe o que os outros estão fazendo. E nem sempre tal controle é intencional. Quando um motorista de carro atropelou vários ciclistas em Porto Alegre, alguém estava com a câmera do celular ligada e filmou o acontecido.

Entretanto, tal controle dos "pequenos irmãos" pode extrapolar os direitos e deveres. Estamos vendo diversos casos de "justiça" com as próprias mãos. E aí Matt Ridley de novo nos explica: quando aqueles que devem punir não punem os aproveitadores (nestes caso, o Estado), os que se sentem lesados punem os que deviam punir com mais intensidade.

Então chegamos à tal meritocracia. Cada um recebe conforme o que dá.

Mas o que é mérito, como medi-lo ? Por horas trabalhadas ? Então um engenheiro deve ganhar menos que um operário ? Ah, então seria pelo grau de instrução ou tempo de formação ? Então, só o diploma já me garante um salário ? Ou seria medir o mérito pela criatividade, esforço mental e capacidade de resolver problemas ? Ou então medir pelos resultados ? Num projeto, quem deve receber mais ? Se alguém do time sair, o projeto não dará certo.

Jeremy Rifkin escreveu "O fim do emprego". Ele conta como a tecnologia está alterando o trabalho. Alvin Toffler ("A Terceira Onda") também já havia escrito sobre isto na década de 80. Todos sabem: o número de postos de trabalho gerados pela tecnologia não cresce na mesma medida que diminuem os postos eliminados pela tecnologia. E o que é pior: aqueles que perdem o emprego por causa da tecnologia não são os que vão ocupar os cargos criados por ela.

Até vejo iniciativas dos governos tentando dar capacitação para jovens e até mesmo para os mais experientes que precisam de recolocação. Mas os esforços ainda estão em modo linear na guerra contra a exponencial da tecnologia.

E o final é triste. Vejo um senhor de idade vendendo balas numa sinaleira. Alguém poderá dizer que ele não quis aproveitar as oportunidades quando jovem. É justo que cada um colha o que plantou. Mas se ele tentou e o destino não lhe sorriu tanto assim ? Um bilionário da Internet ou um especulador das bolsas de valores são mais merecedores do que este senhor ?  Usaram melhor seu cérebro, seu tempo, seus contatos, o dinheiro que ganharam e as demais oportunidades recebidas ?

E o lucro ? É justo que o empresário receba mais que o empregado ? Os empregados foram defendidos por Marx e Engels. Mas o empresário irá dizer que está assumindo o risco. Quando um empreendedor contratava pessoas para buscar sal no deserto, ele pagava os custos do projeto (camelos, água, mantimentos) e ainda assumia o risco. Se o grupo se perdesse ou fosse assaltado, as perdas eram só do empreendedor. Mas qual a parcela de cada um neste jogo ? O que cada um deve receber ?

O que temos hoje é um contrato social entre as parte, regido pela tal "lei da oferta e da procura". Mas este acordo muitas vezes é assinado na pressão. Alguém assina para perder porque já não tem mais nada.

Seria possível ser igualitário ? Na tribo Ponam (conforme Ridley), homens saem para pescar. Um empresta a rede, outro o barco e outros só entram com seu trabalho. Todos recebem parcela igual dos resultados.

Alguém já disse por aí, provavelmente no Facebook: o mundo não é justo. Estamos lutando para que a justiça aconteça.

Alguns livros para complementar o assunto:

- Race Against The Machine: How the Digital Revolution is Accelerating Innovation, Driving Productivity, and Irreversibly Transforming Employment and the Economy, de Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee

- The New Division of Labor: How Computers Are Creating the Next Job Market, de Frank Levy e Richard J. Murnane

- meu futuro livro sobre "A História da Inovação - volume I - As grandes revoluções tecnológicas da Humanidade", onde vou comentar mais sobre a origem do lucro, os grupos sociais, a vida dos caçadores-coletores, e sobre as revoluções da agricultura e industrial e as mudanças que causaram na divisão do trabalho, no papel do governo, etc.

- meu futuro livro (ainda distante) sobre "Disseminação do Conhecimento: como a informação se espalha, seja boa ou ruim, seja verdade ou boato", onde contarei mais sobre a cooperação, altruísmo e egoísmo.





Um comentário:

Alexandro Corrêa disse...

Excelente artigo! Muitas perguntas difíceis de serem respondidas. Um abraço prof. Stanley!